domingo, 5 de novembro de 2017

The Code (O Código)

Depois de muiiiito tempo sem aparecer por aqui (6 anos, 1 mês, 11 dias e 3 horas, mais precisamente XD ), inspirada no blog de um amigo, resolvi ressuscitar o defunto (o blog, não o amigo :-p ) e ver no que dá. Alguns dos temas recorrentes neste blog, que "coincidentemente" são os meus preferidos, são questões associadas aos fundamentos de matemática e como o uso (explícito ou não) de alguns desses fundamentos pode influenciar diversos aspectos da sociedade, como a construção de definições, conceitos em ciência e o modo como encaramos uma série de situações. Então, seguindo um pouco essa linha, neste primeiro post da segunda fase do blog resolvi falar um pouco a respeito de um documentário sobre padrões matemáticos na natureza, produzido pela BBC.


O documentário se chama The Code (o código) e, apesar do nome, não tem nada a ver com numerologia (eu juro que eu achei que fosse, quando li o título na netflix, mas aquela pontinha de esperança de que não fosse me fez assistir anyway). É uma série com três episódios, cada um abordando um aspecto diferente da matemática e a sua conexão com o mundo que nos cerca. A idéia é criar uma espécie de caça ao tesouro, em que as pistas são os padrões que encontramos na natureza (tanto na física, quanto na biologia). Esses padrões nos dão um vislumbre de algo bem mais geral que parece estar por trás de tudo (literalmente), o tal código, que nada mais é do que a matemática.

O primeiro capítulo explora uma série de números "misteriosos" que teimam em aparecer na natureza, em diferentes contextos. Um dos exemplos que achei bastante interessante é o caso das cigarras periódicas. Diferente das demais, essas cigarras aparecem aos milhões na América do Norte por poucas semanas, fazendo uma algazarra, se reproduzindo e por fim morrendo. A próxima geração aparece apenas depois de 13 ou 17 anos (dependendo da espécie).  Um dos pontos importantes aqui, é que a sobrevivência dessas cigarras está fortemente relacionada ao tamanho absurdo da população, que emerge simultaneamente, minimizando as chances de que as cigarras sejam capturadas por predadores. Nesse sentido, seria desastroso que cigarras periódicas com ciclos de vida diferentes emergissem ao mesmo tempo e se reproduzissem. Isso porque os filhotes teriam ciclos de vida variados e não emergiriam simultaneamente. Notem que esses intervalos de tempo para o surgimento das cigarras, 13 e 17 anos, são números muito especiais, chamados de números primos. Os números primos são números inteiros (sem vírgula) que não podem ser divididos por nenhum outro número além de 1 e deles mesmos. Graças a essa característica, múltiplos de números primos (por exemplo 2*13, 3*13, 4*13,...,  e 2*17, 3*17, 4*17,...) coincidem muito menos frequentemente do que múltiplos de outros números, o que significa que estes ciclos de vida de 13 e 17 anos minimizam os encontros entre as espécies diferentes de cigarras.

Outro exemplo interessante são as diferentes situações em que \pi aparece. Como muita gente sabe, esse número é associado a formas circulares ( \pi pode ser obtido da divisão do perímetro de um círculo pelo seu diâmetro). No entanto, \pi surge também em uma série de outras situações, aparentemente desconectadas (algumas à primeira vista, outras à segunda, e assim por diante XD ). No documentário, o exemplo é o caso da distribuição de pesos de peixes pescados por um pescador entrevistado. A partir da média de pesos dos peixes de um dia de pesca, e do número médio de peixes pescados por dia (e o total de anos), é possível calcular o peso aproximado do maior peixe já pescado ao longo dos anos de trabalho do pescador. Isso é possível por que o peso desses peixes, assim como uma séries de outras quantidades na natureza, segue uma distribuição normal, dada pela equação {\displaystyle f(x)={\tfrac {1}{\sigma {\sqrt {2\pi }}}}\;\;\mathrm {e} ^{-{\frac {1}{2}}\left({\frac {x-\mu }{\sigma }}\right)^{2}}.} O ponto importante aqui é que é possível fazer esse tipo de predição porque esse sistema apresenta um padrão que é descrito por essa equação, e esse padrão envolve \pi.

O último exemplo que vou citar deste capítulo são os números imaginários, carinhosamente apelidados de i (raiz quadrada de -1). Muita gente considera que números imaginários são um tanto quanto artificiais. Esse capítulo do documentário mostra um exemplo bastante prático de uma situação em que os números imaginários fazem toda a diferença: radares aéreos.
Os radares funcionam enviando pulsos de ondas de rádio e analisando a pequena fração do sinal que é refletida após encontrar o alvo. Esse tipo de análise envolve cálculos complexos, resultantes da interação entre ondas eletromagnéticas (cuja representação envolve números imaginários). O uso desse tipo de número torna os cálculos muito mais simples e rápidos (o que indica uma "preferência" da natureza que a experiência nos ensinou a levar em conta).



Depois de abordar um pouco sobre os números "mágicos" da natureza, no segundo capítulo o documentário entra na questão dos diferentes padrões que
 encontramos, envolvendo formas geométricas. Um exemplo é o caso das colméias, que são formadas por compartimentos em formato hexagonal (seis lados iguais).  A "escolha" desse formato tem a ver com a necessidade de armazenar a maior quantidade de mel usando a menor quantidade de cera possível: é basicamente um problema de otimização (pra quem já estudou cálculo diferencial).
O interessante é que vemos esses padrões de otimização (maximização ou minimização, dependendo do contexto) não apenas em biologia, mas por toda a física (na física, chamamos isso de princípio da ação mínima). Um dos exemplos que o documentário apresenta nesse sentido é o caso das bolhas de sabão, cujo formato redondo minimiza a tensão superficial (que significa que a força de coesão  entre as moléculas, necessária pra manter a estrutura da bolha, é a menor possível). Notem que se adicionarmos mais bolhas, umas sobre as outras, os formatos mudam, sempre seguindo esse princípio de minimização.

Todos esses padrões nos indicam que o universo tem uma série de regularidades que chamamos de leis, as quais nos permitem prever uma série de coisas. Mas não todas. Porquê? O terceiro capítulo do documentário entra justamente nessa questão. Existe uma série de sistemas que apresentam comportamentos caóticos. Isso significa que pequenas variações nas condições iniciais podem gerar resultados absurdamente diferentes. O exemplo clássico é o chamado efeito borboleta, que diz que o vôo de uma borboleta de um lado do mundo poderia acabar gerando uma tempestade no outro lado (notem que isso é uma analogia: uma pequena variação nas condições iniciais, que acaba levando o sistema a um estado completamente diferente).


 Um exemplo mais prático e bastante interessante, citado no documentário, é o caso  dos lemmings "suicidas" (sqn). A população desses roedores pode variar absurdamente de um ano para outro, e a explicação do porque disso tem a ver com a natureza caótica do sistema. É possível modelar o crescimento da população de lemmings (assim como o de uma série de outras espécies) através de uma equação bem simples, que leva em conta apenas o crescimento da população devido à nascimentos (r*P, onde r é a taxa de crescimento da populção e P é o tamanho dessa populção) e a morte por competição (r*P*P).

O interessante é que essa equação só é "bem comportada" para certos valores de r, enquanto para outros, o comportamento do sistema é caótico, podendo ir de um estado em que a população é gigante a uma situação de quase-extinção, dentro de um intervalo curto de tempo, que é justamente o que acontece com o lemmings.

Outro exemplo de sistema caótico é o clima. Por causa disso, as previsões do tempo são feitas a partir de modelos baseados na coleta de muiiito dados. O que se faz então é considerar um monte de possíveis pequenas variações nesses dados (já que eles não são completamente precisos) e então recalcular os resultados. Como o sistema é caótico, para intervalos de tempo curto (um dia, por exemplo), os resultados não diferem tanto e as previsões podem ser  razoáveis. Quanto maior o tempo, no entanto, maiores são os efeitos das variações das condições iniciais no resultados,  e fica cada vez mais difícil prever corretamente o que vai acontecer.


Mesmo nesses casos, os padrões estão lá, são apenas tipos diferentes de regras. Essas regularidades, segundo o documentário, fazem parte  do código (matemática), que está por trás de tudo o que vemos (e não vemos) na natureza: "Everything has mathematics at its heart. When everything is stripped away, all that remains is the code." (tradução livre: "tudo tem matemática na sua essência. Quando despimos a realidade, tudo o que resta é o código").

Como já dizia Galileu (no Saggiatore):

"A filosofia [Física] está escrita nesse grandioso livro que  está sempre aberto a nossa contemplação (refiro-me ao universo), mas que não pode ser entendido sem que primeiro se aprenda a língua e conheçam-se os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos, e outras figuras geométricas, sem as quais é humanamente impossível entender sequer uma de suas palavras; sem estes fica-se a vagar por um escuro labirinto."

7 comentários:

  1. Muito bom! Acho que tenho de assistir The Code! :)

    ResponderExcluir
  2. Obrigada, mãe!
    Isso, isso, isso!Vocês precisam assistir! :)

    ResponderExcluir
  3. Muito bom o texto e esse documentário!

    ResponderExcluir
  4. obrigada, maninha! Realmente, um dos melhores documentários sobre o assunto que já vi... :-)

    ResponderExcluir
  5. Muito bom o texto. Adicionei o documentário à minha lista no Netflix. Eu sou uma manteiguinha, é tanta beleza e perfeição... quase choro. :)

    ResponderExcluir
  6. Obrigada, maninha!
    Siim, esse documentário é muiito bom!!
    Assisti duas vezes, a primeira quando descobri ele, e a segunda para escrever o post, parando pra anotar coisas...provavelmente um dos melhores documentários que já assisti nessa categoria... =)

    ResponderExcluir