quarta-feira, 28 de julho de 2010

Definições, vida e método científico...

Voltando a falar de definições, há dois conceitos que, embora essencialmente diferentes, apresentam problemas semelhantes na maneira como algumas de suas definições foram construídas. São eles o conceito de vida e o conceito de ciência. Neste post o conceito de vida não será abordado (devido a questões espaciais =p ). A idéia é reservar um post para isso, mas quem tiver interesse em detectar problemas nesta definição, pode começar lendo isso (mais específicamente a parte da definição biológica).

Segundo a wikipédia, "ciência" consiste, basicamente no seguinte:
  1.  Conhecimento adquirido através do método científico.
  2.  Sistema de adquirir conhecimento baseado no método científico.
 Vejamos a primeira definição. De acordo com esta definição, "ciência" é um tipo muito especial de conhecimento, trata-se do "conhecimento obtido através de...". O ponto principal nessa definição consiste em levar em conta a história do que está sendo definido: o conhecimento por si só não basta, é necessário que ele tenha sido obtido através do método científico. Note-se que um mesmo  conhecimento obtido através de métodos diferentes (o método científico e outro método qualquer) pode, nesse caso, ser considerado ciência e não ciência ao  mesmo tempo. Vemos que o que nos permite a identificação é o método e não o conhecimento em si. O único parâmetro necessário em nossa definição é, portanto, o método científico. Qualquer parâmetro acrescentado desnecessariamente provoca perda de eficiência. Aqui entra uma questão muito importante sobre definições: elas devem levar em conta as características do que está sendo definido, e não o histórico. Um exemplo é a entropia (que não é a  medida da desordem), a qual pode ser associada à medida da informação de um sistema, e é representada por uma função de estado. Uma característica muito importante sobre as funções de estado é que a sua variação não depende do caminho percorrido pelo sistema, apenas dos estados inicial e final. Boas definições seguem esse padrão (embora isso nem sempre seja possível). Partindo dessa idéia, podemos tentar reciclar a definição de ciência acima citada, definindo ciência como um conjunto de conhecimentos que tem determinado tipo de comportamento. A partir dessa definição genérica, devemos agora escolher quais os tipo de comportamento nos interessam. Nesse contexto, um tipo de padrão que parece interessante é: como a informação se comporta frente à realidade. O ponto central aqui é o que usualmente chamamos "falseabilidade". Diferentemente do que a palavra sugere, falseabilidade consiste na possibilidade de testar algo, de maneira a verificar sua validade. Podemos definir "ciência" como o conjunto de conhecimentos que passam no teste da falseabilidade. O problema de definir-se ciência com base apenas nesse conceito é que a definição torna-se abrangente demais. Mesmo o ato de informar as horas à alguém consistiria em "fazer ciência", já que o conhecimento adquirido pela outra pessoa seria passível de teste e estaria em concordância com a realidade. Vemos então que é necessário impor mais alguns limites em nossa definição, e esses limites estão diretamente relacionados ao método científico.

Analisemos a segunda definição da wikipédia. Poderíamos encontrar uma definição menos abrangente, mas sem parâmetros desnecessários. Ao invés de utilizar o método científico como um mero coadjuvante na definição, podemos colocá-lo no centro: ciência é o método científico. Essa definição nos permite identificar o que é e o que não é ciência com base em padrões de comportamento (note-se que o conceito de falseabilidade está embutido na definição, embora não seja o único parâmetro): que tipo de comportamento devemos esperar de um método para que ele possa ser considerado ciência? Qual a sua eficiência frente a outros métodos? em outras palavras, ao aplicar o método científico sobre uma quantidade inicial de informação qual o resultado obtido, e qual a diferença deste em relação aos resultados obtidos através do uso de outros métodos?

Essa definição aparentemente é mais adequada: suficientemente compacta, e genérica na medida certa.

A partir da definição de ciência, podemos então definir o que é pseudociência: toda e qualquer coisa, além do método científico, propagado como se fosse ciência. Sendo assim, uma pseudociência pode ser um fato ou não, pode ser falseável ou não. Por exemplo, se eu digo que um átomo de hidrogênio possui um elétron e afirmo que esse conhecimento é ciência, estou fazendo disso uma pseudociência, pois trata-se apenas de um conhecimento referente ao átomo de hidrogênio (lembrando que definir ciência como "conhecimento" é problemático).

É interessante, nesse ponto, analisar o que torna o método científico tão eficiente, e muito mais confiável do que a maior parte dos outros métodos de pesquisa (puramente experimentais, sem análise estatística, por exemplo, lembrando que estes não devem ser confundidos com a parte experimental do método científico). O grande salto da humanidade em termos de metodologia foi descobrir métodos que permitissem uma espécie de libertação da filosofia pura, possibilitando a construção de modelos e teorias de tal modo que estes pudessem caminhar por conta própria, sem terem de ser carregados, a todo instante, pelas filosofias de seus autores. O diferencial destes métodos sobre todos os outros de que se tem conhecimento, desde os primórdios da humanidade, consiste no uso explícito da matemática; mais do que uma nota de roda pé, o "core". Como bons exemplos de cientistas que usaram pesadamente o método ciêntifico, de maneira muito bem sucedida, podemos citar Hamilton, Maxwell, Gauss, Riemann e Lorentz. No século XIX, Hamilton, além de suas inúmeras contribuições à mecânica clássica e à óptica, formalizou (não sozinho) o chamado "princípio da ação mínima", ou "princípio da otimização", um dos princípios mais fundamentais da natureza, o qual é utilizado em todos os ramos da física (relatividade, mecânica quântica, eletromagnetismo, etc..). No mesmo século Maxwell desenvolveu uma das teorias mais brilhantes de todos os tempos, a Teoria Eletromagnética (unificou o Magnetismo e a Eletricidade através de quatro equações, as quais podem ser representadas por apenas duas que descrevem todos os comportamentos eletromagnéticos da natureza) a qual permitiu a descoberta da velocidade absoluta da luz, bastante desconcertante na época. É importante notar que a teoria de Maxwell não era um conjunto de filosofias e sim as próprias equações, caso contrário é bem possível que o éter luminífero fizesse parte da teoria. Ainda no século XIX Riemann, um matemático, generalizou os trabalhos de Gauss que resolviam o problema do quinto postulado de Euclides, problema este que deu muita dor de cabeça aos matemáticos por séculos. Os cinco postulados de Euclides, propostos por volta do século V a.C, geram a chamada Geometria  Euclidiana (na qual não existe curvatura). O quinto postulado, o qual pode ser formulado de muitas maneiras, diz basicamente que retas paralelas nunca se cruzam. O problema dos matemáticos era descobrir se esse quinto postulado realmente trazia algo de novo ou poderia ser descartado sem alterar o sistema. Gauss descobriu, assim como alguns outros matemáticos da época, que esse postulado realmente restringia o sistema, e a sua eliminação gerava outros tipos de geometrias, com curvatura constante. Riemann generalizou os trabalhos de Gauss e descobriu as geometrias de curvatura não necessariamente constante: as chamadas Geometrias Riemannianas, das quais a Euclidiana é um caso particular, em que a curvatura é nula. Mais tarde Einstein, no contexto da Relatividade Geral, descobriu que o espaço-tempo em que vivemos é curvo (Geometria Semi-Riemanniana) e que a gravidade é resultado dessa curvatura.  Por último, podemos citar Lorentz, físico que desenvolveu as chamadas Transformações de Lorentz, essenciais à Relatividade Restrita, além de outros inúmeros trabalhos.

Todos estes cientistas trabalharam brilhantemente utilizando extensivamente o método científico. Ao analisar, mesmo que superficialmente, seus trabalhos, encontramos um padrão: suas teorias eram constituídas de estruturas matemáticas. Obtemos assim, pistas sobre o que torna uma teoria eficiente, e como podemos definir "Teoria Científica" e "Método Científico". Obviamente, a parte experimental do método científico também tem papel muito importante, pois é através dela que podemos avaliar a validade de nossos métodos, modelos e teorias (como foi o caso dos trabalhos citados acima). Mas ela, por si só, não possui a eficiência do método científico completo, da mesma maneira que correr com apenas uma perna tende a ser menos eficiente do que com duas (embora seja mais  eficiente (em princípio) do que correr sem pernas, apenas se arrastando - a filosofia da ciência se encaixa nesse último caso).

O século XIX, porém, não foi marcado apenas por descobertas através do uso do método científico, mas pela descoberta de Darwin, bastante surpreendente, de mecanismos evolutivos básicos, embora seus métodos de pesquisa constituissem um atraso em relação aos métodos da época (e mesmo de séculos anteriores-vide Newton e Galileu), o que torna a descoberta ainda mais supreendente. Do ponto de vista filosófico e no que diz respeito à coleta de dados, Darwin fez um trabalho impressionante, deu um dos passos iniciais no estudo de como a natureza, mais especificamente os seres vivos, se altera com o tempo (apesar do não-uso da parte experimental do método científico). Depois de seu trabalho muita pesquisa tem sido desenvolvida nessa área, muitas delas auxiliadas pelo método científico. No entanto, ao que parece, a teoria de Darwin ainda não foi formalizada. A formalização da teoria nos permitiria analisar mais claramente como os postulados se relacionam com outros temas referentes à evolução, como por exemplo a possibilidade da origem através de um único ancestral e a própria origem da vida (não apenas a idéia intuitiva da relação entre esses temas).  Do ponto de vista científico esta formalização é indispensável. Uma de suas vantagens é a de  facilitar a análise quantitativa das evidências. (Note-se que embora os mecanismos evolutivos sejam comprovados, fatos, a análise crítica aqui não deixa de ser fundamental: é ela que nos permite aprimorar nossos métodos e modelos, e não implica necessariamente em descartá-los. A eliminação da "visão crítica" garante a estagnação de uma pesquisa. Sempre (ou quase?) é possível analisar fatos criticamente, afinal é isso que nos permite obter informações úteis a partir deles. Esse comentário refere-se a comentários que leio de vez em quando, os quais sugerem que não podemos analisar criticamente fatos, tais como a gravidade por exemplo, e que isso implicaria em substituí-la por alguma alternativa mirabolante).

Resumindo, definir ciência como conhecimento pode gerar contradições, e mesmo que não o faça não é uma definição otimizada. A definição mais adequada para ciência é: método científico. Qualquer coisa além disso, propagada como ciência, passa a fazer parte do grupo das pseudociências. A base do método científico não é a filosofia, é a matemática (mesmo na parte experimental).

Devemos lembrar sempre que não existem pessoas neutras, e sim métodos neutros. Eis a importância do uso do método científico. Embora o uso de  linguagem formal não garanta a infalibilidade de uma teoria, ele facilita a  verificação neutra.

Já dizia Galileu, um dos pais do método científico, há quase 400 anos atrás:

"La filosofia è scritta in questo grandissimo libro che contianuamente ci sta aperto  innanzi a gli occhi (io dico l'universo), ma non si può intendere se prima non s'impara a intender la lingua, e conoscer i caratteri, ne' quali è scritto. Egli è scrito in lingua matematica, e i caratteri son triangoli, cerchi, ed altre figure geometriche, senza i quali mezi è impossibile a intenderne umanamente parola; senza questi è un aggirarsi vanamente per un oscuro laberinto." (Saggiatore - Galileu Galilei, 1623)

Tradução: "A filosofia [note-se que a 'filosofia' a que Galileu se refere equivale ao que chamamos de 'Física', atualmente] está escrita nesse grandioso livro que  está sempre aberto a nossa contemplação (refiro-me ao universo), mas que não pode ser entendido sem que primeiro se aprenda a língua e conheçam-se os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em linguagem matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos, e outras figuras geométricas, sem as quais é humanamente impossível entender sequer uma de suas palavras; sem estes fica-se a vagar por um escuro labirinto."

8 comentários:

  1. É isso que eu quero dizer com se basear as idéias em coisas externas a nós. Adorei o post. =*

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  2. é verdade...usar o próprio umbigo com ponto de referência pode ser problemático hehe
    e isso acontece mais freqüêntemente quando usamos métodos baseados em filosofia do que em matemática...

    valeu maninha =)
    bjinhus

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  3. Gostei muito Sandinha. Foram muito claras as tuas explicações.

    Beijo

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  4. Sugiro a leitura do livro "A lógica do Cisne Negro". Texto interessante que argumenta sobre a tal eficiência dos métodos científicos. Na verdade, argumenta contra essa eficiência.

    Confesso que o texto do livro organizou algumas idéias difusas que tinha sobre o assunto.

    Eu pessoalmente não defendo a abolição de tais métodos, mas me parece que existe uma super valorização do vem através dele e, ao mesmo tempo, uma sub valorização de descobertas oriundas do empirismo.

    Meus 2 cents.

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  5. Oi Eustáchio,

    vou comentar um pouco sobre o trecho que li do livro...

    De maneira geral, as críticas que o autor coloca se aplicam muito bem à filosofia, mas não necessariamente ao método científico, que não depende da filosofia...
    Começando pela própria lógica do cisne negro: quando nos baseamos em filosofia tendemos a entender as coisas de maneira intuitiva, e a nossa intuição foi construída de acordo com as nossas experiências, ultra-específicas, para as quais a idéia de um cisne negro pode não fazer o menor sentido. O que a humanidade descobriu, porém, foram métodos que previam cisnes negros teóricamente, e davam detalhes de como e onde poderíamos encontrá-los, além disso nos mostravam como esses cisnes se relacionavam com outros fenômenos aparentemente desconexos...a partir dessas informações eles poderiam ser verificados experimentalmente...

    Exemplos disso são os efeitos quânticos, os efeitos relativístivos, fenômenos como os buracos negros (previstos pela relatividade), a velocidade absoluta da luz, o BigBang...graças a essas metodologias temos toda a tecnologia que temos hoje. Mas é claro que não podemos prever todas as situações. Esse tipo de abordagem, porém, não é uma atitude neutra, que não faz diferença e não nos ajuda a melhorar o futuro. Ao contrário, ela nos faz desenvolver melhores estratégias e procurar a melhor maneira possível de lidar com situações mesmo imprevisíveis.

    Inclusive, no que diz respeito a escolha de estratégias aplicada a fenômenos sociais, algo bastante citado pelo autor (ao menos no trecho que li), existe uma metodologia de pesquisa que pode ser aplicada também a isso: a Teoria dos Jogos. Tenho planos de escrever um post sobre isso futuramente...

    O ponto é, existem fenômenos difíceis de prever, frente a essa situação temos, basicamente, duas escolhas: nos conformarmos com isso e seguirmos em frente sem pensar sobre isso, ou buscamos métodos que nos ajudem a entender como as coisas funcionam e que lá pelas tantas possam até nos fazer rever nossos conceitos sobre cisnes, doa a quem doer...
    esses métodos podem não ser perfeitos, mas sem sombra de dúvida é o melhor que temos...e nada impede o aperfeiçoamento...

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  6. Muito bem colocado, Sandinha. Já li muita coisa na área da Filosofia da Ciência, incluindo textos muito elogiados e bem aceitos.

    Olhando superficialmente, esses "bons" textos parecem muito lúcidos e coerentes, citando inclusive exemplos concretos da pesquisa científica (muitas vezes, pseudocientífica). O que praticamente todos tinham em comum? Exemplos invertidos (os casos reais correspondentes tendiam a desmentir as conclusões), conceitos tecnicamente errados, destaque de coisas sem importância, omissão de coisas fundamentais...

    Em mais de uma ocasião, meus colegas físicos me apresentavam alguma dessas "gemas" como se fosse uma grande descoberta. Minha reação era: "dê uma olhada mais de perto nesses conceitos. Veja o exemplo X desse autor e compare com o que você sabe de Física. Não é exatamente o contrário do que ele está dizendo?" E era.

    Certa ocasião, tive um colega de grupo de pesquisa que não estava conseguindo lidar com algumas coisas da Teoria Quântica de Campos. Conversei com ele para descobrir a causa da dificuldade. Descobri: eram conceitos que ele aprendeu em livros sobre Filosofia da Ciência que eram incompatíveis com as leis físicas com as que estávamos lidando! Desmascarados aqueles conceitos, o problema desapareceu e os aspectos dos comportamentos dos sistemas nucleares que estávamos estudando começaram a parecer simples para ele.

    Uma vez resolvi contar a densidade de erros conceituais fáceis de verificar em textos de Filosofia da Ciência. Cheguei a achar mais de 10 por parágrafo! Mas, pra quem não confere o significado matemático do que o autor está dizendo, tudo parece muito certo, muito claro e de acordo com o cotidiano (não científico, naturalmente). Já mencionei que eram livros e artigos de autores famosos e respeitados?

    O problema parece sempre ser induzido por conceitos inconsistentes de ciência, como se fosse meramente uma área de atividade filosófica ou social, ignorando completamente o mecanismo que faz a ciência ter uma eficiência tão notável, que é a Matemática. Claro, se tomarmos exemplos das pseudociências (apresentadas como ciência mas que não fazem uso explícito de métodos matemáticos adequadamente), esses exemplos tendem a não se mostrar mais eficientes do que outras abordagens. Claro, é pseudociência, exemplo errado! As considerações tecidas nessa área quase sempre se aplicam à própria Filosofia da Ciência, mas dificilmente são válidas para a ciência em si.

    Nessa área, muita gente voltou a perseguir a própria cauda como se fazia antes de Galileu e pensa que isso é progresso filosófico.

    Moral da história: a Filosofia tem demonstrado constantemente que não tem condições de compreender (saber tudo sobre) a ciência, mas pode e deve aprender com ela e modificar-se de acordo com suas descobertas.

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  7. Obrigada pela contribuição pai... =)

    Realmente, filosofia é uma área muito escorregadia... é importante que ela se apoie sobre a ciência (e não o contrário)...

    bjinhus

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